OPINIÃO

Para onde vai o processo civil brasileiro?

Sérgio Cruz Arenhart
Professor da UFPR.
Mestre, doutor e pós-doutor em Direito.
Procurador Regional da República.

O Código de Processo Civil completa seu sétimo ano de vigência e é possível, olhando para a experiência formada até aqui, ter alguma ideia dos principais impactos por ele deixados no direito processual nacional. Talvez esses impactos possam parecer ainda tímidos, mas é natural que uma cultura formada ao longo de tanto tempo não se submeta a uma abrupta transformação, apenas por força de novos diplomas legais. Bem ao contrário, o que se vê com frequência é uma tentativa de submissão dos novos institutos a esquemas de pensamento antigos e, posteriormente, uma gradual erosão dessas bases hermenêuticas em favor de novos ares interpretativos.

Não obstante os avanços significativos alcançados, ainda há muito a caminhar. Em especial, a dificuldade na implementação de padrões mínimos de segurança jurídica, a demora na conclusão da prestação jurisdicional e a litigância de massa continuam a ser problemas relevantes para o Estado brasileiro.

Nesse sentido, ao lado da necessidade de implementar com maior força técnicas que sejam, de fato, capazes de realizar os valores apontados, há ainda espaços pouco explorados – ou não adequadamente resolvidos – neste novo direito processual civil.

Além da questão da litigância de massa, parece que há três pontos de maior destaque nessa floresta ainda pouco explorada: a) os limites entre a liberdade das partes e a atuação do Estado-juiz; b) a gestão adequada da massa de processos; e c) a efetivação dos direitos e das decisões judiciais.

Quanto ao primeiro aspecto, o tema tangencia, como é óbvio, a discussão dos limites para os negócios processuais à luz dos objetivos da jurisdição estatal. Embora a doutrina brasileira sobre os negócios processuais seja abundante,[1] fato é que ainda não está claro até onde as partes podem dispor das regras processuais. E parece que essa dificuldade está em grande medida atrelada à inexistência de uma visão clara a respeito do papel da Jurisdição no Estado brasileiro atual. Afinal, a jurisdição se presta para a solução da controvérsia das partes? Ou tem finalidades públicas, como a preservação do direito estatal, a reafirmação da autoridade do Estado, a pacificação social etc.?

A depender da resposta que se dê a essas perguntas, parece natural ampliar ou reduzir o espaço de disponibilidade das partes sobre o processo e suas regras. Sobretudo porque (ao lado das poucas hipóteses específicas) a lei processual trata da liberdade das partes por meio de uma cláusula geral (art. 190, do CPC), há espaço amplo para que visões que pendam mais para o protagonismo das partes ou para a prevalência do papel do juiz ditem contornos distintos para a latitude que podem assumir os negócios processuais válidos. Some-se a isso a situação ainda titubeante da jurisprudência na fixação de marcos para enfrentar o problema; ao mesmo tempo em que há julgados generosos com os poderes das partes, há aqueles nitidamente contrários a uma subordinação dos juízes à vontade dos sujeitos parciais do processo.

Enfim, há aqui ainda um caminho pedregoso a ser enfrentado e que está longe de alcançar tratamento minimamente pacificado, seja na doutrina, seja na jurisprudência.

Com relação à gestão judiciária, tem-se verdadeiro tema ainda inóspito e que poucos se animam a descortinar. Há tempos se defende a necessidade de adotar uma visão pan-processual para a administração da Justiça e para o estudo dos institutos processuais isolados.[2] Pensar no contingente de processos existentes e na necessidade de que as soluções devam ser pensadas à luz desse volume e dos limites dos recursos (físicos, humanos, econômicos, culturais etc.) disponíveis impõe reexaminar diversos cânones do processo civil.

É a partir dessa lógica, por exemplo, que se pode repensar a garantia do Juiz Natural e a forma como os órgãos jurisdicionais cooperam na busca da mais eficiente distribuição da Justiça.[3] É também a partir desse critério que se pode encontrar novas abordagens para o tratamento da prova[4] e para a própria tutela coletiva.[5]

Além disso, é provavelmente por meio da mais eficiente administração do “serviço Justiça”[6] que se conseguirá equacionar a difícil relação existente entre a necessidade de garantir o mais amplo acesso à Justiça possível com os limites inerentes aos recursos jurisdicionais disponíveis.

Este, de toda sorte, parece ser ainda um terreno a ser mais detidamente esquadrinhado.

Enfim, tem-se o tormentoso problema da implementação das ordens judiciais e dos direitos. O processo de execução – agora acompanhado do procedimento de cumprimento de títulos judiciais – sempre foi o calcanhar de Aquiles do processo civil nacional. O problema, no entanto, vem-se agravando a passos largos, a ponto de representar, de um lado, o principal vilão da alta taxa de congestionamento das demandas judiciais,[7] e, de outro, a mais gritante concretização do ditado popular “ganha, mas não leva”.

Os efeitos nefastos desse problema são sentidos em ambientes que vão muito além das fronteiras da ciência processual. Afetam a economia, abalam a credibilidade do Poder Judiciário e põem em dúvida a própria capacidade do Estado em solucionar os conflitos.

E novamente parece que esse problema está longe de receber tratamento adequado. Quando da entrada em vigor do código, parecia que direito processual receberia uma lufada de novos ares, com a possibilidade da generalização das tutelas executivas atípicas, a que se refere o art. 139, inc. IV. Todavia, a dificuldade em superar certos dogmas e o paternalismo que sempre se deferiu à figura do réu/executado fazem com que haja pouca expectativa de uma revolução nesse espaço.

O Superior Tribunal de Justiça vem aplicando ainda timidamente os poderes atípicos de efetivação autorizados pela lei,[8] tendo afetado para apreciação como repetitivo o debate sobre o tema (Tema 1.137). A sua vez, o Supremo Tribunal Federal foi instado, por meio da ADIn 5.941, a avaliar a constitucionalidade do próprio emprego das medidas executivas atípicas de modo amplo, o que recentemente resultou em juízo de improcedência, evitando um retorno ao modelo típico (e de responsabilidade exclusivamente patrimonial) executivo, próprio do direito liberal burguês do século XVIII.

Novamente, de todo modo, o cenário não é animador. A tendência à desjudicialização da execução ou às reformas pontuais eventualmente verificadas não parece ser suficiente para, de novo, enfrentar as raízes do problema. E, por isso, é muito possível que essa continue a ser a ferida crônica do processo civil brasileiro.

Em acréscimo a todas essas dificuldades, não podem ser esquecidas as relações entre o processo civil e a chamada 4ª Revolução Industrial, campo em que as encruzilhadas são diversas.

De um lado, é preciso notar que a “ciberjustiça” não se contenta com a mera digitalização de autos e de atos processuais. É preciso, novamente, rever conceitos clássicos, como a distribuição da competência territorial e a forma de gerir volumes expressivos de documentos e de provas em geral. O emprego da tecnologia pode também representar importante ferramenta para romper a barreira dos limites tradicionais à participação dos interessados no processo, na medida em que permite interação direta e ampla de sujeitos (pouco importando onde estejam), sem a necessidade de recorrer a figuras como a representação coletiva ou a presunção de autorização.

Por outro lado, a tecnologia atual apresenta desafios novos, na medida em que a manipulação de informações e de provas se torna mais fácil e mais difícil de ser detectada. O mundo tecnológico em que se vive também muda o conceito de “duração adequada”, dado que o imediato é cada vez mais a régua com que se mede a razoabilidade da resposta oferecida.

Segue disso que o Judiciário precisa adaptar-se a esses novos tempos. Hoje é possível encontrar sistemas de solução de controvérsia on line que são capazes de oferecer respostas em uma semana. A experiência de mecanismos como a plataforma “www.consumidor.gov.br” aponta para o estabelecimento de novos parâmetros para a aferição da eficiência da prestação jurisdicional. E assim o Judiciário precisará encontrar sua nova roupagem na dinâmica atual.

Em conclusão, não se pode negar que o direito processual civil – fomentado, sem dúvida, pelos debates que orbitaram a edição do código de processo civil de 2015 – percorreu grande e estimulante jornada nesse tempo de vigência. Todavia, como lembra a poetisa paranaense Helena Kolody, “para quem viaja ao encontro do sol, é sempre madrugada”.[9]

Nessa infindável jornada, a coluna Opinião, do Núcleo de Direito Processual Civil Comparado da UFPR, que ora se inaugura, tem o propósito de contribuir para o desenvolvimento do processo civil, com o aporte de reflexões acadêmicas sobre esses e outros desafios enfrentados pela disciplina.


[1] Entre tantas obras essenciais sobre o tema, v. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. A ed., Salvador: JusPodivm, 2020, passim; SILVA, Paula Costa e. Perturbações no cumprimento dos negócios processuais. Salvador: JusPodivm, 2020, passim; DIDIER JR., Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais. 2ª ed., Salvador: JusPodivm, 2021, passim; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. 4ª ed., Salvador: JusPodivm, 2020, passim.

[2] V., ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais. 2ª ed., São Paulo: RT, 2014, p. 37 e ss.; OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade: análise crítica da teoria processual. São Paulo: RT, 2017, passim; JOBIM, Marco Felix. As funções da eficiência no processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 2018, passim.

[3] V., sobre o tema, CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual. São Paulo: RT, 2021, passim.

[4] V.g., PASCHOAL, Thaís Amoroso. Coletivização da prova. São Paulo: RT, 2020, passim; ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais, ob. cit., p. 242 e ss.; LESSA NETO, João Luiz. Produção autônoma de provas e processo comparado. Londrina: Thoth, 2021, passim; YARSHELL Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009, passim; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Ações probatórias autônomas. São Paulo: Saraiva, 2012, passim.

[5] V., por exemplo, ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Curso de processo civil coletivo. 3ª ed., São Paulo: RT, 2021, p. 53 e ss.

[6] A expressão é de Remo Caponi (“Il principio di proporzionalità nella giustizia civile: prime note sistematiche”. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milano: Giuffrè, Vol. LXV, n. 3, set.-2014, p. 1076).

[7] É o que revelam, novamente, os dados do Conselho Nacional de Justiça (https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf).

[8] Sobre isso, mais aprofundadamente, v. ARENHART, Sérgio Cruz. “Tutela atípica de prestações pecuniárias. Por que ainda aceitar o ‘é ruim mas eu gosto’?”. Revista jurídica da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. N. 06, mai-2018, passim.

[9] KOLODY, Helena. “Sempre madrugada”. Sempre palavra. Curitiba: Criar, 1985, passim.

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