OPINIÃO

Originalismo e Precedentes

Samuel Sales Fonteles
Doutorando em Direito na UFPR.
Visiting Scholar na Stanford Law School.

Introdução

Se hoje estivesse sendo julgado, deliberado, o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, se estivesse empatado 5 a 5, Vossa Excelência, como Ministro, votaria a favor […] ou não?”. Com estas palavras, proferidas por ocasião da sabatina do Ministro André Mendonça na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o então Senador Fabiano Contarato pretendeu avaliar se o histórico precedente firmado pelo STF, na ADPF 132, estaria ameaçado pelo eventual ingresso do candidato escrutinado na Suprema Corte[1].

A pergunta formulada foi pouco usual. No Brasil, o escrutínio do Senado não costuma elucidar a filosofia judicial do pretenso juiz[2]. Isso porque, se é que eles existem, a História Constitucional Brasileira até então não tem fornecido exemplos de magistrados comprometidos – de maneira consistente – com uma única abordagem de interpretação constitucional.

No constitucionalismo norte-americano, a sabatina invariavelmente sondará a (in)disposição do postulante para abandonar precedentes[3] em desconformidade com o significado original da Constituição. Senadores analisam se – e em que medida – a visão originalista de um Juiz diminuiria a sua deferência pela doutrina do stare decisis[4].

Há uma razão para isso. Não raro, precedentes já enraizados foram concebidos por decisões que não seriam amparadas pelo significado original do texto constitucional. Cria-se, então, um dilema: originalistas estariam dispostos a superar precedentes que permanecem desalinhados com o significado original? Esta se tornou uma objeção persistente, como demonstra a vasta literatura a respeito.

Engana-se quem pensa que a recente decisão proferida em Dobbs v. Jackson (2022), que superou Roe v. Wade (1973), inaugurou esse fenômeno. Muitos só perceberam essa dicotomia neste momento, mas a disposição para que originalistas abandonem precedentes que vão de encontro – e não ao encontro – ao significado original é uma teoria que vem sendo sustentada há algumas décadas.

Apenas para se ter ideia, no ano de 2011, em palestra na Universidade de Harvard, Stephen Markman fez uso dessa oportunidade para revelar algo intrigante sobre a sua postura como Justice da Suprema Corte do Estado de Michigan. Após reconhecer a permanente tensão entre stare decisis e Originalismo, Markman lembrou seu juramento de cumprir a Constituição dos EUA, não aquilo que foi decidido pelos seus antecessores (2011, p. 111). Ao final, asseverou: “I take these oaths seriously” (MARKMAN, 2011, p. 111). A declaração está longe de ser inédita. No século passado, a mesma ideia já era enunciada por Justices da Suprema da Corte dos EUA.

Até onde eles e elas serão capazes de ir? Quando, se é que algum dia, seria tarde demais para se desvencilhar de precedentes “errados”? Em um choque entre o significado original e a segurança jurídica, que valor constitucional haverá de prevalecer? Estas as indagações que se nos afiguram.

No Brasil, o tema se reveste de elevado interesse prático, na medida em que inúmeros precedentes foram produzidos em desarmonia com o significado original da Constituição de 1988. A extensão do poder normativo dos Conselhos Nacionais[5], o poder investigatório do Ministério Público[6] e a amplitude das competências atribuídas às Guardas Municipais, por exemplo, são desfechos dificilmente acomodados pelo significado original. Assim também a união civil entre pessoas do mesmo sexo, daí porque a pergunta do Senador Contarato, como mandatário porta-voz dessa respeitável fração social, foi tão oportuna e importante[7]. Claro, apontar essa inconsistência com o significado original não significa que essas medidas não são politicamente convenientes, mas apenas que é uma tarefa difícil justificá-las sobre bases originalistas (WURMAN, 2017, p. 23).

Pois bem. Não há um consenso exato entre originalistas sobre como lidar com precedentes inconstitucionais. Neste ensaio, o propósito é apresentar uma visão panorâmica sobre as principais correntes a esse respeito.

Da divergência entre originalistas a respeito dos precedentes no Common Law

Uma primeira corrente, mais radical, entende que nunca é tarde para corrigir os rumos da jurisprudência. Na Suprema Corte dos Estados Unidos, o compromisso com a Constituição parecia inegociável para o Justice Rehnquist. Em Wallace v. Jaffree[8], o Juiz divergiu dos seus pares e assentou: “[…] no amount of repetition of historical errors in judicial opinions can make the errors true”, ou seja, uma sucessão histórica de erros – precedentes equivocados – não os converteria em um acerto. Um representante contemporâneo desta abordagem na atual composição da Suprema Corte seria o Justice Clarence Thomas[9]. Na Academia, Gary Lawson, Mike Paulsen e Randy Barnett são possíveis expoentes. Esta visão está centrada na em uma leitura específica da Supreme Clause na Constituição norte-americana (art. VI, cl. 2), consoante a qual é a Constituição, não os precedentes, que constitui a “supreme law of the land”.

Uma segunda corrente é, sim, capaz de assimilar alguns erros do passado. Os motivos para essa tolerância, porém, podem variar em função da Escola originalista. John McGinnis e Michael Rappaport arguem que o próprio significado original da Constituição autoriza os precedentes ao tratá-los como parte integrante do Common Law federal, contra os quais o Congresso pode reagir por meio da lei (2011, p. 122). Ademais, a História Constitucional demonstra que, ao longo dos duzentos anos que levaram à ratificação constitucional, magistrados nunca ignoraram precedentes por completo (McGINNIS & RAPPAPORT, 2011, p. 123). Evidências históricas ratificam precedentes no sistema anglo-saxônico, nas colônias americanas, nos estados independentes, durante os debates de ratificação e na própria Suprema Corte (McGINNIS & RAPPAPORT, 2011, p. 123).

Por meio de uma abordagem normativa consequencialista, duas regras devem ser seguidas:

  • o precedente prevalece sobre o significado original quando os benefícios de fazê-lo superem os malefícios (McGINNIS & RAPPAPORT, 2011, p. 122). Por exemplo, não seria conveniente retroceder ao status quo ante que havia antes do papel moeda ou do Social Security (McGINNIS & RAPPAPORT, 2011, p. 126). Por outro lado, esta primeira regra não impediria que célebres precedentes fossem superados, a exemplo de Humphreys Executor, Morrison v. Olson e a própria constitucionalidade das agências reguladoras (McGINNIS & RAPPAPORT, 2011, p. 126).
  • precedentes entrincheirados são preservados, assim entendidos aqueles apoiados por uma supermaioria comparável àquela exigida para a promulgação de emendas à Constituição (McGINNIS & RAPPAPORT, 2011, p. 126). Este seria o caso de Brown e Griswold, mas não de Roe (McGINNIS & RAPPAPORT, 2011, p. 126).

Outra corrente se vislumbra nos escritos do Justice Antonin Scalia, para quem o papel do stare decisis é permitir que falsidades sejam, no interesse da estabilidade, convertidas em verdades. Segundo ele, “The whole function of the doctrine is to make us say that what is false under proper analysis must nonetheless be held true, all in the interest of stability” (SCALIA, 1997, p. 139). Em cenários mais difíceis, que envolvem precedentes arraigados e com um elevadíssimo custo social para serem eventualmente abandonados, o Justice chegou a se definir como um “originalista com o coração mais medroso” (1989, p. 864), declarando alguns anos depois que o stare decisis não fazia parte da sua filosofia originalista: pelo contrário, ele constituiria uma “exceção pragmática” (1997, p. 140). Em suma, o Originalismo nem sempre vai amputar precedentes, mas às vezes poderá estancar uma hemorragia impedindo que eles se expandam para normatizar outros casos, até então não abrangidos, no futuro[10].

Por fim, a corrente de Jack Balkin sustenta que, com base na tradição política norte-americana, precedentes que ampliaram direitos fundamentais das mulheres, elevaram a liberdade de expressão e concederam poderes federais para a proteção do meio ambiente e dos direitos civis não são erros lamentavelmente tolerados. Em vez disso, são eles conquistas do constitucionalismo norte-americano e “fonte de orgulho” (2011, p. 9). Simplesmente, esta é a maneira pela qual cidadãos americanos vindicam o texto e os princípios constitucionais na história (BALKIN, 2011, p. 12).

Conclusão

Como já foi muito bem observado por Professores deste Núcleo de Pesquisa, “Existindo precedente constitucional ou precedente federal sobre o caso debatido em juízo, a fidelidade ao direito constitui fidelidade ao precedente” (MARINONI, ARENHART e MITIDIERO, 2021). De fato. Sucede que, em se tratando de precedentes inconstitucionais, a fidelidade ao precedente pode se traduzir em infidelidade à Constituição.

Mesmo assim, a depender da Escola originalista, precedentes podem ser vencidos ou vencedores. Hoje a importância desse diálogo é expressamente reconhecida no Originalismo contemporâneo (WHITTINGTON, 2011, p. 35). Daí porque está incorreta a suposição precipitada de que originalistas não admitiriam, por exemplo, a ADPF 132. Se adotada a abordagem de Scalia, McGinnis & Rappaport ou Jack Balkin, haveria boas razões para acreditar que o precedente poderia ser mantido.

Originalistas fazem bom uso de precedentes para liquidar a vagueza e ambiguidade de dispositivos constitucionais (SOLUM, 2017, p. 295) e até mesmo seus ferrenhos opositores hoje já sabem que a adesão ao precedente pode ser uma justificativa suficiente para que originalistas excepcionem o significado original (SEGALL, 2018, pp. 8-9).


[1] Assim também na ADI 4277. Por uma questão de acurácia quanto à informação apresentada, a rigor, tais precedentes se referiam à união estável – não ao casamento. O Conselho Nacional de Justiça deu um passo adiante e proibiu que os Cartórios se recusassem à celebração do casamento.

[2] Uma exceção pode ser encontrada na sabatina do Ministro Nunes Marques, quando o Senador Marcos Rogério questionou se ele seria um Juiz originalista (Notas Taquigráficas da 13ª Reunião Extraordinária da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, 2ª Sessão Legislativa Ordinária, 56ª Legislatura, 21/10/2020, p. 56).

[3] Segundo o célebre dicionário de Henry Campbell Black, originalmente publicado em 1891, estas são as entradas para o vocábulo “precedente”: “1. The making of law by a court in recognizing and applying new rules while administering justice. 2. A decided case that furnishes a basis for determining later cases involving similar facts or issues” (1999, p. 1195).

[4] Embora não haja uma sobreposição perfeita, o Black Dictionary conceitua a expressão stare decisis como doutrina do precedente: “The doctrine of precedent, under which it is necessary for a court to follow earlier judicial decisions when the same points arise again in litigation” (1999, p. 1414). Embora alguns autores estabeleçam distinções, inclusive para negar a sede constitucional da doutrina do stare decisis – aspecto este minoritário no Direito Constitucional dos Estados Unidos –, o fato é que ambos são conceitos relacionais.

[5] A própria criação de Conselhos Nacionais antagonizou Constituintes como Paes Landim e Nelson Jobim (DANC, Suplemento C, p. 1029). Nelson Jobim era favorável (DANC, Suplemento C, pp. 1029-1030). Prevaleceram as razões de Landim, mas ambos concordavam que a iniciativa não tocaria na atividade-fim dos membros da Judicatura, aspecto que hoje tem sido uma realidade.

[6] A Assembleia Nacional Constituinte rejeitou emendas que permitiriam ao Ministério Público supervisionar ou avocar investigações criminais (Emendas de n.º 945, 424, 1025, 2905, 20524, 24266 e 30513).

[7] O dispositivo constitucional que previu a união civil entre homens e mulheres foi fruto de uma emenda de autoria do Bispo Roberto Augusto, que entendeu de explicitar o antagonismo de sexos exatamente para não tornar o texto do anteprojeto permeável à interpretação que veio a prevalecer no STF (DANC, Suplemento B, p. 209). Não por acaso, após uma pesquisa nos registros dos debates, o Ministro Lewandowski reconheceu: “Os constituintes, como se vê, depois de debaterem o assunto, optaram, inequivocamente, pela impossibilidade de se abrigar a relação entre pessoas do mesmo sexo no conceito jurídico de união estável.” (voto proferido na ADI 4277).

[8] 472 U.S 38, 107 1985.

[9] O voto do Justice Clarence Thomas em Dobbs v. Jackson, em obiter dictum, sinalizou uma disposição para fazer o mesmo em Griswold (anticoncepcionais), Lawrence (criminalização da sodomia) e Obergefell (casamento gay). Na década de 70, Robert Bork publicou um trabalho seminal sustentando que a linguagem constitucional não acomodaria o desfecho de Griswold (1971, pp. 8-9).

[10] Dada a extensão deste ensaio, não se efetuará uma incursão nos detalhes destas teorias, que possuem nuances relevantes. Por exemplo, Thomas assume uma postura distinta quando há dúvidas sobre o erro do precedente. Por sua vez, após um meticuloso estudo, já se concluiu que Scalia efetivamente tratava o stare decisis como uma exceção pragmática, mas essa excepcionalidade não era tão escancarada quanto o seu gracejo (“faint-hearted”) sobre si mesmo poderia sugerir (BARRETT, 2017, p. 1922).

Referências

BALKIN, Jack M. Living Originalism. The Belknap Pres of Harvard University Press: Cambridge, Massachusetts, 2011.

BARRETT, Amy Coney. Originalism and Stare Decisis. Notre Dame Law Review, Vol. 92, pp. 1921-1943, 2017.

BORK, Robert H. Neutral Principles and Some First Amendments Problems. Indiana Law Journal. Volume 47, n.º 1, pp. 1-35, 1971.

GARNER, Bryan A. Black’s Law Dictionary. Seventh Edition. St. Paul: West Group, 1999.

MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021 (e-book).

MARKMAN, Stephen. Originalism and Stare Decisis. Harvard Journal of Law & Public Policy. Vol. 34, n.º 1. pp. 111-120, 2011.

McGINNIS, John O. RAPPAPORT, Michael B. Originalism and the Good Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 2013.

SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997.

SCALIA, Antonin. The Lesser Evil. University of Cincinnati Law Review, Vol. 57, Issue 3, 1989. pp. 849-866.

SEGALL, Eric J. Originalism as Faith. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.

SOLUM, Lawrence B. Originalist Methodology. The University of Chicago Law Review. N. 84, pp. 269-295, 2017.

WHITTINGTON, Keith E. Harvard Journal of Law & Public Policy. Vol. 34, n.º 1. Is Originalism Too Conservative? In: Originalism 2.0. pp. 29-41, 2011.

WURMAN, Ilan. A Debt Against The Living: An Introduction to Originalism. New York: Cambridge University Press, 2017.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *