Rafaela Mattioli Somma[1]
As significativas mudanças sociais ocorridas no último século impactaram diretamente a função da jurisdição, sobretudo após a passagem do Estado Liberal para o Estado Social e Democrático de Direito. Por consequência, a proteção dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição de 1988, na medida em que demanda a atuação de um Estado intervencionista, passa a exigir do Poder Judiciário brasileiro atuação diversa da tradicional, especialmente em razão da crescente judicialização de questões complexas.
As condições sociais e as dinâmicas organizacionais burocratizadas, fruto da dinâmica social contemporânea, não raras vezes culminam na violação de direitos, dando origem a litígios complexos e multipolares cuja natureza – por transcender a perspectiva individual do ilícito – não se coaduna com a lógica bipolar do processo tradicional, a exigir a busca por um tratamento processual diferenciado[2].
É a partir dos novos desafios decorrentes da realidade brasileira atual que as structural injunctions estadunidenses, voltadas à proteção dos direitos fundamentais no contexto da burocratização das relações sociais[3], emergem no horizonte da doutrina e jurisprudência pátrias, suscitando o debate acerca do processo civil estrutural.
A reforma estrutural encontra suas raízes na jurisprudência estadunidense, especificamente no esforço empreendido pela Suprema Corte norte-americana para colocar em prática a decisão prolatada no caso Brown v. Board of Education of Topeka, em 1954 e 1955 e, depois, quando do julgamento do caso Holt v. Sarver, datado de 1969. As medidas adotadas e a condução processual dos julgamentos por parte da Corte estadunidense indicavam um atuar jurisdicional inédito, cuja forma de adjudicação foi identificada pela doutrina, anos mais tarde, sobretudo com base nos escritos de Abram Chayes e Owen Fiss, sob os conceitos de litígio de interesse público[4] e de structural injunction[5], respectivamente.
Na reforma estrutural, a perspectiva exclusivamente individualista é alterada, passando a incluir grupos sociais. Isso porque, o litígio de um processo estrutural origina-se no âmbito de uma violação que afeta, em graus variados e de maneiras diferentes, direitos, interesses e o próprio bem-estar de subgrupos sociais distintos, independente de estes compartilharem ou não a mesma perspectiva social[6]. É justamente pelo fato de a vítima de um processo judicial estrutural não ser um indivíduo, mas um grupo ou mesmo diversos subgrupos sociais, que o Professor Edilson Vitorelli defende que o litígio estrutural se trata, em verdade, de um litígio coletivo irradiado[7].
O lítigio estrutural caracteriza-se por apresentar elevado nível de complexidade e múltiplos polos de interesse, estes marcados por direitos não satisfeitos socialmente de forma orgânica, a demandar a reorganização do estado de coisas irregular a fim de assegurar que valores jurídicos sejam efetivamente implementados.
Daí porque o processo estrutural, desenhado para atendimento das situações em que constatada a presença de um problema estrutural, não se direciona propriamente ao julgamento de um ato ilícito passado ou futuro, mas busca eliminar as ameaças contínuas e reiteradas aos valores constitucionais. Trata-se, portanto, de um mecanismo formal, de caráter eminentemente prospectivo, por meio do qual o Juízo, quando se depara com um problema de natureza estrutural, emite diretrizes em um sentido futuro, visando à reestruturação do estado de coisas.
As decisões estruturantes, à medida em que possuem como escopo solucionar o problema estrutural em sua inteireza, demandam do Judiciário a adoção de perspectiva futura e atenta à realidade social.
Não apenas diante da necessidade de identificar o estado de coisas permanente e generalizado de desconformidade, mas também por exigir decisões providas de sentido prospectivo, se defende que a complexidade probatória que entremeia o processo estrutural pode encontrar na prova estatística ferramenta útil à construção da fundamentação de quaisquer das decisões judiciais que têm palco em ambas as fases processuais[8].
A despeito de não encontrar previsão no diploma processual brasileiro, o emprego das estatísticas destaca-se como importante prova atípica, consentânea com a complexidade inerente aos litígios estruturais, tendo em vista que, para além de se materializar em economia de recursos e de tempo, também possibilita acesso a dados que não seriam obtidos por outras vias.
Por intermédio da prova estatística torna-se possível prever padrões de comportamento ou mesmo a possibilidade de ocorrência (ou não) de determinados eventos, de modo que o emprego de dados estatísticos exsurge como meio idôneo à construção de raciocínio presuntivo, dotado de sentido prospectivo.
“Método empregado para, a partir da avaliação de um universo de elementos – inteiramente ou por amostragem – extrair conclusões que possam servir como argumentos de prova no processo civil”, a prova estatística pode ser de caráter descritivo ou inferencial[9], revelando-se suscetível de estimar a possibilidade de ocorrência de um fato futuro e desconhecido com base em um fato pretérito, sem, contudo, concluir pela certeza de sua ocorrência.
No primeiro caso, a estatística visa descrever um determinado conjunto de dados sem, contudo, firmar conclusões com base na análise obtida, ao passo que, no segundo, se volta à construção de um raciocínio conclusivo, de natureza generalizante e especulativa que, via de regra, é realizado a partir de estudos de amostragem[10]. Daí porque a prova estatística apresenta duplo grau de incerteza: em ambas as modalidades estatísticas, a confiabilidade e a utilidade da análise encontra-se condicionada não apenas à qualidade do banco de dados utilizado, como também ao método analítico aplicado[11].
A grande resistência ao uso das estatísticas como meio de prova no Judiciário tem por cerne os problemas inerentes à qualidade do banco de dados ou à adequação metodológica da análise, se estendendo para alcançar o caráter probabilístico das estatísticas.
A crítica, contudo, não é suficiente para afastar o uso das estatísticas no processo, tendo em vista que diversos meios de prova, inclusive amplamente utilizados, possuem o mesmo caráter probabilístico[12]. É o caso, por exemplo, da comparação de impressões digitais, dos exames de DNA, da perícia grafotécnica, da prova testemunhal, dentre outras, as quais apontam resultados prováveis e não conclusivos.
Tendo em vista que os resultados decorrentes do uso da prova estatística podem contribuir sobremaneira para o deslinde do feito e que essa utilização se faz possível a partir da previsão normativa de meios de prova atípicos, necessário que se debruce sobre a regulamentação da matéria, a orientar os Tribunais e magistrados quando de sua utilização.
Dada a ausência de disciplina da questão no ordenamento jurídico brasileiro, parâmetros para o emprego da prova estatística diante de litígios complexos podem ser encontrados no Manual for Complex Litigation, o qual orienta que, quanto à admissibilidade e valoração da prova estatística, o Juízo tenha em perspectiva: “a) se a população foi adequadamente escolhida e definida; b) se a amostra eleita é representativa da população; c) se as informações colhidas foram corretamente descritas; e d) se as informações foram analisadas de acordo com os princípios estatísticos admitidos”[13].
A utilização dos parâmetros indicados, em conjunto com os critérios usuais de pertinência e adequação da prova, se revela imperiosa à condução de uma instrução probatória confiável e útil, conferindo racionalidade argumentativa ao processo decisório e maior controle à justificação judicial, pois agrega legitimidade à decisão prolatada, fomentando a previsibilidade e a segurança jurídicas.
[1] Doutoranda em Direito Processual Civil pela UFPR. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista pela Universidade de Barcelona. Professora do curso de pós graduação da Escola da Magistratura do Paraná. Supervisora Pedagógica da EMAP. Coordenadora-Geral do Curso de Preparação à Magistratura da EMAP. Formadora da ENFAM. Tutora da EJUD. Membro do IBDP. Integrante do Grupo de Pesquisa do Núcleo de Direito Processual Civil Comparado da UFPR. Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
[2] ARENHART, Sérgio Cruz. Processos estruturais no Direito Brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão.
[3] ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, nov. 2013. v. 225. p. 6.
[4] CHAYES, Abram. The role of the judge in public law litigation. Harvard Law Review, n. 7, v. 89, maio 1976.
[5] FISS, Owen. The forms of Justice. Harvard Law Review, vol. 93, nov. 1979, n. 1.
[6]VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo. São Paulo: Thomson Reuters, outubro/2018, vol. 284, p. 333-369.
[7]VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo. São Paulo: Thomson Reuters, outubro/2018, vol. 284, p. 333-369.
[8] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 14.ed.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. p.586-587.
[9] ARENHART, Sérgio Cruz. A prova estatística e sua utilidade em litígios complexos. Rev. Direito Praxis, Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 1, 2019, p. 661.
[10] ARENHART, Sérgio Cruz. A prova estatística e sua utilidade em litígios complexos. Rev. Direito Praxis, Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 1, 2019, p. 664.
[11] VITORELLI, Edilson. Raciocínios probabilísticos implícitos e o papel das estatísticas na análise probatória. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 76, p. 51-74, abr./jun. 2020, p. 52.
[12] VITORELLI, Edilson. Raciocínios probabilísticos implícitos e o papel das estatísticas na análise probatória. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 76, p. 51-74, abr./jun. 2020, p. 54.
[13] ARENHART, Sérgio Cruz. A prova estatística e sua utilidade em litígios complexos. Rev. Direito Praxis, Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 1, 2019, p. 671-672.